sábado, 24 de fevereiro de 2007

Ocaso - Prólogo do fim


Ocaso


“Ver”. Olho pela janela. Bate uma vontade de correr e fugir. Observo o movimento de massas e capacetes verdes. Percebo o fim à minha frente. Será todo o esforço, o amor, a dedicação de tantas pessoas e companheiros que morreram ou que continuam a sofrer nos porões e claustros da sociedade que buscávamos pôr fim, perdidos?
Como poderia eu correr? Pensamento idiota, aja como o homem forte que foi até agora. Dizem que no fim sempre chamamos por deus. De fato, é o que estou a fazer. No momento da Morte, o homem abdica de toda sua tão apreciada lógica. No final, o homem é todo coração. Arrependemo-nos de tudo que deveríamos ou não ter feito, pensamos naqueles que perdemos e naqueles que devemos evitar perder. Mas, acima de tudo, o homem é seu Ego.
As tropas se movem mais para perto. Suicido-me? O que passa pela minha cabeça é que qualquer saída para a situação seria um ganho. Mesmo que esta não exista. A Morte: a tão temida, não por ser calejada, difícil, dolorosa e excruciante. Mas por ser o Fim. “Será mesmo? Espero que não”.- é a pergunta que nos fez buscar a religião. Para nos dar um novo paraíso, uma saída para o maior mistério da humanidade. E, ao mesmo tempo, dar sentido à existência. De todo jeito, seria Morte um Fim para um Início? Ou o período chamado Vida é algo não-contínuo, e que a sensação de linearidade que temos seja apenas um mecanismo bioquímico da própria enganação? Não tenho mais Tempo.
Bombas explodem no pé do prédio. Sinto o tremor e vejo as fotos de meus companheiros serem manchadas por uma torrente de areia e entulhos. Percebo a catarse inerente ao momento se esvair como água num riacho de um dia ensolarado. Preciso agir: o rifle em minhas mãos, corro para o pequeno abrigo construído anos antes, para uma situação como esta. Para isso teria que descer as escadarias cambaleantes no meio das bombas, do ruído dos engenhos dos aviões, da sinfonia cadavérica dos corpos sendo mutilados e das gargantas coléricas, esperneantes, caladas pelo aço. O Bacamarte do Fim estremece e os ouvidos murcham: percebo que mais uma de nossas defesas principais é agora pó. Do pó ao pó. Clichê, mas nunca tão bem dito.
Ou morro ou corro. Prefiro o segundo. Desço as escadarias célere, para encontrar um jovem soldado inimigo absorto na destruição, não me percebendo. Tenho que o matar. Ainda assim vejo a tristeza em sua face de adolescente, uma vida desperdiçada em beligerância, um garoto que nunca conheceu a efêmera beleza da juventude, ignorante aos malefícios do Poder e alienado a uma ideologia catastroficamente errônea. Lábios que provavelmente nunca receberam os de um semelhante seu. Lindo, pois, o considerava. Se possível o tomaria como filho meu. Talvez em outra encarnação. Puxo o gatilho.
Tomo o elevador manual do pequeno abrigo. Desço até o porão de armas e rações que junto com todos amigos e companheiros (muitos sem um funeral descente, provavelmente neste momento tendo seus restos roídos ou pelo verme ou pela máquina de guerra), em dias mais felizes, quando nossa ideologia era forte e os corações queimavam na vontade de mudar o mundo. Assim como aqueles que tentaram antes de nós, décadas, séculos atrás. Penso não apenas nos ensinamentos do velho sábio, que nunca cheguei a conhecer, mas que acendeu a faísca da revolução em muitas mentes que, junto comigo, tentaram peitar o opressor de cara. Apesar da nossa iminente derrota, tenho certeza que algum dia o feito será lembrado por uma geração posterior que poderá viver tudo que o Soldado Adolescente terminou trocando por Guerra, Aço, Fogo, Dor.
Abro o alçapão, olho em volta. Em meu pequeno abrigo tenho mantimentos para aproximadamente uma semana. Resisto.

“Dez dias passaram-se. Olhando pela pequena escotilha do abrigo vejo um Ocaso rubro e inegavelmente frio. Não há árvores, não há prédios, não há vida, há escombros, putrefação, chuva e uma névoa fina que lembra cinza vulcânica. Isso reflete não só a paisagem do exterior como também a do meu âmago. Dez dias são suficientes, em minha concepção, para se pensar numa eternidade de assuntos que por via poderiam parar em minha cabeça. Existencialmente, minha hora foi prolongada um pouco em relação ao dia em que resolvi fugir do Fim, mas sinto que com o nível de água, ração e sanidade que me resta, não durará a chegar. De fato aqui escrevo a última página do Diário do Claustro.”

Quiçá o homem ou mulher que achar tais páginas será tocado pelas palavras de um velho quase louco. De qualquer maneira, agarro meu rifle e me lanço para a abertura da escotilha, não só para o Fim, mas para uma incógnita praia azul no meio de um coqueiral, para os braços de uma musa desconhecida de olhos claros, para o cosmos do Universo, como um viajante sideral. Minha ficção é minha sobrevivência. Assim como a de todos. Vida é a Ficção que nós romantizamos para não morrer de solidão. Sempre foi assim. Nadando contra a corrente ou navegando nela, nunca estamos em cima da margem. Corro e caio em entulhos, ouço barulho de tiros contra mim, um deles acaba por rasgar minha fronte. Estando ainda de pé e com sangue quente correndo sobre mim, vou em cima do Inimigo. A esperança não é a última que morre?




*Shot*




- Cabo, um cão velho saltou da terra. Meti-lhe uma bala entre os cocos.
- Heh, da terra? Coelhos fracos preferem o abrigo. Vamos, amanhã iremos voltar para casa. Nossas esposas estão preocupadas. O Chefe do Governo disse que irá revogar as pensões dos mortos.
- Ainda bem que só levei um arranhão, na guerra. Pobre coitada da minha Maria se eu morresse.
- Pois é. Sabe duma coisa, Oficial? Cá entre nós, às vezes me pergunto se o que esses nossos inimigos falavam de igualdade e paz não seria melhor que a ruína da casa da minha família e os míseros dois contos que recebo por mês.
- Ah, deixa a política pra lá... É melhor obedecer às ordens lá de cima e voltar pra casa antes do fim do dia para não perder a novela!

Leonardo Trevas, Setembro/2006

Um comentário:

andré barreto disse...

belo ensaio, caro revolucionário, uma boa analise dos ultimos momentos de um homem em conflito, conflito este interno e externo, alem passar o sentimento de como a vida é tão fugaz. Cara, o pior é que eu tive um sonho parecido essa ultima noite, nao, eu nao morria, porem corria feito um louco, fugindo da morte, da tortura, do terror. O cenário era uma rua, ladeiras, avenidas, vielas, o ano ou dia eu não sei, mas eu era jovem e estava com outros iguais a mim na rua protestando, clamando mudanças, no entanto aparece a policia e começa a atirar em todos, dispersando a massa, dai... pernas pra que te quero.
Mas é isso ai, quando puder va la ver como anda a jornada do sabiá...